Minidoc #1: Joel Miller e sua Jornada de Herói Trágico (Versão em Texto)

Joel Miller

Por que gostamos tanto de terror e de personagens questionáveis? Ou ainda, por que finais tristes ou ambíguos nos marcam tanto?

O senso trágico propicia uma experiência afirmativa da vida, pois o ser humano luta incessantemente contra os mais diversos obstáculos, mesmo sabendo que um dia irá morrer. Por essa razão, a tragédia grega retrata o herói que luta, apesar da iminência de fracasso, demonstrando amor à vida a despeito de qualquer triunfalismo ou final feliz. Mesmo sabendo do terrível fim das coisas, das chances tão baixas de algo dar certo, o herói segue achando motivos para continuar lutando. Em consequência, o espectador – ou jogador – pode sentir um efeito catártico ao poder vir a ser o outro, num ato total de imersão e cumplicidade pela ação direta de controlar as decisões do personagem. Parece meio complicado, mas já já vai fazer sentido.

Se Joel Miller é um herói ou não, é certamente questionável, mas no senso trágico grego segundo a obra” O nascimento da tragédia”, escrita pelo portador de um belo bigode, Nietzsche, o protagonista de The Last of Us certamente se enquadra. Além de ser alguém cheio de traumas, o paralelo funciona principalmente porque a morte não é a pior coisa que pode acontecer a alguém no mundo desolado apresentado pelo jogo. E hoje o assunto é ele, nosso herói trágico Joel Miller.

Olá, sobreviventes! Em nosso primeiro minidoc no The Last of Us Database falaremos sobre nosso queridinho amante de café, cantor, violonista e definitivamente matador, Joel Miller. Amado por muitos, odiado por muitos mais, mas sem defeitos no nosso coração, a saga do protagonista do primeiro The Last of Us emociona a todos. Para você que chegou aqui mas não conhece muito a respeito sobre jogos, ou caso queira refrescar a memória, estaremos publicando bastante conteúdo, então não esquece de se inscrever em nosso canal, seguir nossas redes sociais (todos os links do menu principal) e, se quiser nos dar aquele apoio e receber várias recompensas, dá uma olhadinha no nosso Apoia.se.

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Lembrando que esse texto contém todos os spoilers possíveis do primeiro jogo. Futuramente faremos uma versão sobre o personagem na Parte II, mas por enquanto sem spoilers da continuação. Ah, e alerta de gatilho para menção de suicídio, tortura e morte (inclusive de crianças).

The Last of Us é um jogo de videogame de ação, aventura, sobrevivência e terror desenvolvido pela empresa Naughty Dog (aquela que fez Crash Bandicoot e Uncharted), publicado originalmente pela Sony Entertainment Studios, sendo um game exclusivo da Playstation – mas com possível lançamento futuro para PC. The Last of Us teve sua estreia em 14 de junho de 2013, e graças à sua narrativa e imersão incríveis, além de gráficos polidos e uma belíssima trilha sonora, conquistou os corações dos gamers ao redor do mundo. Com uma DLC de nome The Last of Us: Left Behind lançada em 14 de fevereiro de 2014, uma continuação direta de nome The Last of Us Parte II, lançada em 19 de junho de 2020 (meu aniversário!), e um remake para Playstation 5 nomeado The Last of Us Parte 1 lançado em 2 de setembro de 2022, a franquia acumula centenas de premiações, como o jogo do ano para The Last of Us Parte II, além de BAFTAS e muitos outros.

O sucesso absoluto tornou possível uma adaptação em série pela HBO, que será lançada em 15 de janeiro de 2023, tendo como diretores Craig Mazin de Chernobyl junto de Neil Druckman, figurinha carimbada e diretor de The Last of Us Parte 2. No elenco vemos os atores Pedro Pascal como Joel, Bella Ramsey como Ellie, Gabriel Luna como Tommy, dentre vários outros nomes poderosos no mercado. E não se preocupa, faremos lives e vídeos falando de cada episódio da série quando ela lançar!

E afinal, do que The Last of Us se trata? Poderíamos juntar horas de conteúdo, mas num resumo breve, a saga conta a respeito de um mundo desolado por uma pandemia proveniente de uma mutação do fungo cordyceps (que até existe na vida real), onde os infectados, apesar de ainda estarem vivos, assemelham-se em comportamento a zumbis que vemos em filmes e outros jogos como Resident Evil. Vinte anos após o surto da doença, acompanhamos a jornada dos protagonistas Joel, um sobrevivente amargurado, e Ellie, uma garota imune à infecção. Entre muitos vais-e-vens, diversas mortes e pequenos momentos de alegria, a dupla deve cruzar os Estados Unidos para encontrar um local operado pelos Vagalumes, uma facção rebelde, na esperança que a imunidade de Ellie torne possível a criação de uma cura para o mal que assolou tudo. Agora, sobre o que a franquia trata de verdade é relações entre personagens e sentimentos desde perda, vingança e redenção.

Nascido em 26 de setembro no Texas, Joel Miller trabalha como carpinteiro, é irmão mais velho de Tommy e pai de Sarah, que teve muito jovem e criou sozinho. Interpretado por Troy Baker nos games, nosso primeiro contato com o protagonista é através de sua filha, que o presenteia com um relógio em seu aniversário logo na primeira cena do jogo. Joel chega tarde em casa, entendemos que os boletos estão acumulando na vida do pai solteiro proletário, e apesar da bela casa a vida parece não estar muito fácil. A data comemorativa logo se torna sombria – a festa virou um enterro – já que é neste mesmo dia que a pandemia do cordyceps estoura, causando comoção, explosões e notícias alarmantes no mundo todo.

Jogando como Sarah, vemos o papai coruja Joel não exitar ao atirar em seu vizinho infectado a partir do momento que ele ameaça a família Miller. No meio da madrugada juntam-se com Tommy numa tentativa de fuga, apenas para descobrir que a cidade está ardendo em chamas e o caos se espalha por todas as esquinas. Joel já mostra sua índole de sobrevivente naquele momento quando passam por uma família pedindo ajuda, deixando-os na estrada. Sua prioridade sempre foi Tommy e, principalmente, sua filha Sarah.

O trio precisa correr na região central da cidade após um acidente com seu veículo, onde Sarah machuca suas pernas e Joel adquire sua famosa cicatriz no nariz. Quando se separam brevemente de Tommy, os dois são interceptados por um guarda militar que recebe a ordem de atirar em qualquer pessoa independente da idade, e dispara contra Joel e Sarah, atingindo-a mortalmente. Tommy aparece naquele mesmo momento, executando o guarda, mas já não havia tempo para Sarah. Numa das cenas mais emocionais e tristes de toda história dos videogames, vemos a garotinha morrer nos braços do próprio pai. Talvez a indiferença de Joel pela humanidade e desinteresse por buscar uma cura tenha iniciado a partir do momento em que Sarah, não infectada, foi morta por um homem lúcido, fardado e seguindo ordens. Afinal, essas pessoas merecem a chance de viver, se sua própria filha teve sua vida ceifada tão injustamente?

Vemos a evolução da infecção do cordyceps e passam-se 20 longos anos. Não é mostrado em imagens o que Joel e Tommy fizeram nesse tempo, como foi seu período de luto, de que forma conseguiu sobreviver, mas ao decorrer do jogo aprendemos pouco a pouco quem Joel foi realmente, e de que forma a jornada em The Last of Us o transforma.

Vivendo em uma zona de quarentena em Boston, locais supostamente seguros e protegidos pelos militares da FEDRA (Federal Disaster Response Agency ou Agência federal de resposta ao desastre), somos reapresentados a um Joel com cerca de 50 e poucos anos, bruto, sério e amargurado. Vemos a truculência com que ladrões ou qualquer tipo de criminoso – quando pego – é tratado, e aprendemos que há tolerância zero para qualquer suspeita de infecção. A execução é feita na hora, e todo mundo parece já estar acostumado. A violência é rotina para todos.

Nosso caro brucutu trabalha junto de Tess, e ambos formam uma dupla aparentemente romântica, contrabandeando materiais e armas entre as áreas. Tess também sabe se virar muito bem quando vai para cima da gangue de Robert, um ex-parceiro de negócios de ambos e que rouba armas dos dois, confessando voluntariamente depois de Tess pedir com jeitinho que vendeu tudo para os Vagalumes. É aí que a aventura começa seu curso, quando Tess e Joel encontram-se com Marlene, a líder da facção dos Vagalumes, exigindo as armas roubadas.

Falaremos mais em um conteúdo futuro, mas os Vagalumes são a facção paramilitar mais importante no primeiro The Last of Us, e buscam encontrar uma cura para a infecção, batendo de frente contra os militares da FEDRA em conflitos por todo os Estados Unidos. Marlene aceita entregar todas as armas e ainda mais materiais caso Tess e Joel aceitem contrabandear uma coisa na região do Congresso de Boston, para outros Vagalumes, já que ela está ferida por conta do último combate. Esse pequeno contrabando de 14 anos, tagarela, boca suja e muita atitude é ninguém menos que Ellie, e é claro que imediatamente Joel não gosta da ideia.

Enquanto Tess e Marlene vão até o local onde as armas estão guardadas, Joel e Ellie aguardam por elas num refúgio. Mesmo a contragosto, Joel aceita fazer a “entrega” junto de Tess, e entre combates nos arredores da cidade, são capturados pela FEDRA e descobrem sobre a infecção de Ellie, que a garota é imune. As coisas começam a fazer sentido especialmente para Tess, que ainda possui um pingo de esperança que é possível uma cura, enquanto Joel imediatamente desacredita tudo que Ellie fala sobre a tentativa dos vagalumes de fabricarem uma vacina.”E se for verdade?” Tess insiste, e decidem seguir até o Congresso mesmo a contragosto de Joel. Estando há 20 anos vivendo o inferno, podemos pensar que Joel ou desistiu de qualquer esperança para cura, ou não quer ter expectativas que serão quebradas, ou ainda, simplesmente não se importa com quem sobrou. Justificado, né?

No caminho, passam por uma das vistas mais famosas do jogo, no prédio torto e devastado, e lutam contra infectados num museu. Passando despercebido de Joel, infelizmente algo horrível ocorre e Tess é mordida, mantendo em segredo por enquanto. Quando chegam no topo do prédio próximo ao Congresso, Joel olha brevemente para seu relógio quebrado enquanto Ellie, próximo da idade de Sarah quando foi morta, menciona a linda vista de uma forma ingênua e inocente. Mesmo o mundo sendo um lugar terrível e Joel fazendo todo esforço para manter a armadura que o protege de sentir afeto às pessoas, em cenas como essa vemos um pequeno relance de seu lado humano.

Chegando ao Congresso, descobrem os Vagalumes que iriam receber Ellie para levá-la até o laboratório mortos no chão, e o visível desespero de Tess. A revelação que foi mordida e que é o fim da linha faz com que Tess imponha a Joel que leve Ellie até seu irmão, Tommy, que fez parte dos Vagalumes, e a única razão que Joel aceita é por partilhar essa sensação de dívida depois de estarem juntos por tanto tempo. Ele não acredita nesse ideal, mas aceita realizar o último pedido de Tess.

A crueza de The Last of Us nos mostra situações de tensão de forma bruta, como a falta de uma despedida ou palavras bonitas entre eles. Sem despedidas, assim como quando perdeu Sarah. O portador de um belo bigode E barba, Freud, diz na obra “além do princípio do prazer” que “descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor”, e que traumas sempre se repetem. Essa ação de Joel talvez se dê justamente por conta de seu mecanismo de defesa de traumas, que é tentar não se apegar de verdade a ninguém e manter a face dum homem extremamente amargurado e triste, que precisa continuar sobrevivendo de alguma maneira.

Joel segue com Ellie numa longa viagem em direção ao oeste dos Estados Unidos. Encontram vários personagens muito icônicos: Bill, um sobrevivente paranóico que devia favores a Joel e fez sua base na cidade de Lincoln, no Massachussets, montando várias armadilhas ao redor dela. Cruzam com ele para buscar um carro, já que o percurso até Jackson é bem longe. Depois de muitos combates e a aparição de um novo infectado na escola, vemos o triste paradeiro de Frank, ex-parceiro amoroso de Bill, que comete suicídio após ser mordido. Antes de se enforcar, deixa apenas uma carta difícil de engolir ao ex companheiro. Num paralelo similar à maneira que Joel reagiu à perda de Tess, Bill tenta segurar o choro e diz “ah, que se dane”, tentando minimizar a importância de mais uma situação traumática com a morte de alguém que significou algo a ele. E Joel, por outro lado, começa a demonstrar um pouco de afeto com Ellie.

Motorizados e com revistas nada apropriadas para garotas de 14 anos, a dupla segue viagem. Próximo de Pittsburgh, na Pensilvânia, são interceptados por um homem pedindo ajuda. Joel acelera o carro e revela à Ellie que já sabia que aquilo era uma cilada, Bino, porque “já esteve dos dois lados”, mostrando novamente uma face desconhecida do nosso brucutu. Quando se trata de um mundo decadente, o jogo deixa claro que nada é preto no branco e que a situação desesperadora que levou a humanidade àquele ponto faz necessárias medidas muito extremas. E falando em medidas extremas, vemos Ellie salvando Joel e matando alguém pela primeira vez. Depois de reclamar sobre o perigo dela usar armas de fogo daquele jeito mal agradecido, Joel se vê obrigado a ensiná-la um básico de como atirar e confia a ela um rifle para lhe dar cobertura. Com o sucesso da empreitada, ele a presenteia com uma pistola, que vai ser muito bem usada.

Depois de escaparem de um carro armado, um encontro do acaso une os irmãos Henry e Sam aos protagonistas. Resolvem juntar forças para sair da cidade e já que Sam tem idade próxima, logo forma uma amizade com Ellie e em alguns momentos podem até voltar a ser crianças. Henry menciona como Ellie está sempre bem humorada, e que para ela às vezes parece que estão alheios a um quase fim de mundo. Os quatro atravessam a cidade, se separam brevemente e vemos o desespero de Joel quando Ellie, que não sabe nadar, pula da ponte quando são emboscados por caçadores. Os instintos de proteção aumentam a cada parte da jornada, culminando nos últimos momentos dos irmãos. Após passarem pelo esgoto, numa das áreas mais marcantes e com cenário mais brutalmente triste de todo jogo, uma conversa auspiciosa onde Sam pergunta a Ellie do que tem medo acaba sendo o último momento de lucidez do garoto de apenas 13 anos. Ellie diz que tem medo de ficar sozinha, um presságio dolorido de seu futuro, e Sam diz que tem medo daquelas “coisas” – os infectados.

Os gritos de Ellie pela manhã mostram Sam, infectado, a atacando. Vemos o sentimento fraterno ainda mais forte quando Joel corre para ajudá-la independente da ameaça armada de Henry. O jovem rapaz acaba por alvejar seu irmão mais novo e tirar sua própria vida em seguida.

Na paisagem gelada de Jackson, Wyoming, os dois finalmente chegam ao refúgio de Tommy, irmão mais novo de Joel. Numa área cercada por uma represa, o reencontro entre os irmãos Miller não segue tão bem – sabe como é reunião de família. Desde a primeira cena no carro no dia da infecção, quando Tommy quer parar na estrada para salvar pessoas e Joel insiste que sigam viagem, vemos a diferença entre os dois. Joel é um sobrevivente antes mesmo da pandemia do cordyceps, e todas suas ações, violentas ou não, refletem nisso. Tommy, no entanto, juntou-se aos Vagalumes e parece ter um idealismo e uma esperança em reconstruir o que foi perdido. Nessa ocasião, Tommy entrega uma foto de Sarah e Joel, mas ele recusa ficar com ela.

“Partimos da grande oposição entre os instintos de vida e de morte. Ora, o próprio amor objetal nos apresenta um segundo exemplo de polaridade semelhante: a existente entre o amor (ou afeição) e o ódio (ou agressividade)”, diz Freud sobre traumas, e ter a imagem de Sarah só faria Joel relembrar o pior momento de sua vida, mostrando que ele ainda não conseguiu superar sua morte e realmente seguir em frente, e que o amor da imagem de sua filha ainda se mistura com o ódio e tristeza de tudo que houve a partir disso.

Após uma discussão entre irmãos, quando Joel larga a responsabilidade de levar Ellie aos vagalumes à Tommy, a represa é atacada e posteriormente descobrem que Ellie fugiu a cavalo para algum lugar. O afeto que Joel sentia por ela também ocorreu do lado da garota. No quarto de uma casa abandonada, ela desabafa dizendo que todo mundo que já amou ou morreu, ou a abandonou, menos Joel – que estava prestes a fazer justamente isso. Quando ela menciona Sarah, Joel explode e diz que ela não faz ideia do que é perder alguém, e que não é seu pai. Todo mecanismo de defesa retorna, seus escudos sobem e a briga intensa mostra que nosso protagonista de coração gelado ainda não aceita falar a respeito do que houve, não conseguindo sequer mencionar o nome de Sarah.

Ao saírem com os cavalos, repentinamente vemos algo diferente. Talvez alguma coisa naquela conversa tenha feito Joel se dar conta que há outra garotinha tão fragilizada quanto ele que só quer alguém que se preocupe com ela e que não vai abandoná-la na primeira oportunidade. A partir desse momento, vemos a primeira grande mudança de comportamento de Joel, que decide por fim levá-la até o laboratório.

O próximo destino da dupla é a Universidade do Leste do Colorado, onde os Vagalumes faziam suas pesquisas. O clima entre os dois é bem mais descontraído e parecem até aproveitar a companhia um do outro. Mas é claro que a sorte nunca está do lado deles, e descobrem que o laboratório foi abandonado e os Vagalumes restantes foram ao hospital Saint Mary em Salt Lake City, em Utah. No entanto o prédio não está vazio e um combate com caçadores se inicia. Nosso queridinho Joel é surpreendido e num momento da briga acaba sendo arremessado e ferido gravemente. O desespero de Ellie e de nós, jogadores, ocorre no momento em que entendemos a seriedade da ferida perfurante que atinge Joel. Conseguem escapar do local, mas o estado dele é crítico, e quando cai do cavalo, nosso coração para. Num paralelo similar à cena onde Joel segura Sarah em seus braços, após ela ser atingida também na região do estômago, Ellie implora que se levante. “Você tem que me dizer o que fazer!”.

Inverno. A dependência da garota com seu tutor e figura paterna, que agora não pode ajudá-la, a obriga a encarar o mundo solitária. O frio não se dá apenas pela grossa camada de neve que se acumula em Silver Lake, Colorado, mas pela solidão de continuar sobrevivendo sozinha. Vemos para nosso alívio Joel ainda vivo, mas meramente inconsciente, lutando até o último suspiro. Ele desperta no porão de uma casa vazia, sem Ellie ou Callus, o cavalo, e imediatamente entende que alguém a capturou. Ignorando completamente seu estado de saúde ainda grave, ele corre para descobrir seu paradeiro, e consegue capturar dois homens. Já havíamos visto várias faces de Joel, em sua maioria bem agressivas ou até estóicas, mas quando capturam Ellie somos apresentados a um Joel cheio de ódio, e que vai até às últimas consequências para encontrá-la. Somos apresentados ao método Miller de tortura, e Joel não parece nem um pouco abalado com o que está prestes a fazer com essas duas pessoas, e a cena é um contraponto à algo similar que ocorre em The Last of Us Parte 2, onde o mesmo método é utilizado, mas não por Joel.

Segue em disparada à cidade e avista um lugar em chamas sem saber que nesse meio tempo Ellie lutava contra um grupo de canibais, num embate físico com David, seu líder, numa situação que poderia ter escalado à violências absolutamente aterrorizantes. Ellie atinge David com uma machete múltiplas vezes e a única coisa que Joel consegue fazer naquele momento é confortá-la. O abraço fraterno, tentando ser naquele momento o ponto de segurança, chamando-a de “baby girl” ou “menininha” como chamava sua filha Sarah, mostra outro ponto de virada da trama e uma mudança em Joel. Naquele momento ele é pai de Ellie, ela se torna a coisa mais importante de seu mundo.

A troca de estações também troca a dinâmica dos dois. Ellie acaba de passar por um trauma horrível e está distante e pouco comunicativa, enquanto Joel, por outro lado, está muito mais aberto a conversas. Fala sobre seu amor à música, que irá ensiná-la a tocar violão quando tudo acabar. É nesse momento que finalmente aceita falar sobre Sarah, explicando que a teve quando era jovem e que sempre foram só os dois. Também vemos a emocionante cena da girafa, mostrando que mesmo após uma quase devastação da espécie humana, a vida continua. O contraste de um animal selvagem e de outro continente rondando numa selva de aço ressalta a ideia de que a natureza está retomando tudo, e que talvez as coisas sempre irão tomar o rumo que devem tomar. O melhor disso, a girafa não está sozinha, e possui uma família que segue viagem junto dela, desbravando sabe-se lá quais novas aventuras.

Similar à primeira conversa que tiveram no topo de um prédio em Boston, quando avistaram o Congresso, Ellie repete que pelo menos a vista é boa. Cenas similares, mas não são só os lugares mudaram. Os dois já são outras pessoas. Joel já não é mais o velho amargurado que só aceitou levar a garota por uma dívida moral com Tess, e quase que prevendo alguma coisa ruim, insiste que podem largar tudo e viver com Tommy. Ellie responde que, depois de tudo que passaram, não pode ter sido em vão. Ela se refere à jornada em busca da cura, do peso de ser a única pessoa imune à infecção e talvez a única esperança de uma vacina, algo que toma como missão de vida. Mas para Joel já não foi em vão, pois ele aprendeu a amar novamente e sua própria sobrevivência já não é mais prioridade.

No último passo da grande e penosa jornada à Salt Lake City, os dois caem dentro de uma corredeira em um túnel cheio de infectados. Ellie não sabe nadar e se afoga, e quando é resgatada por Joel são interceptados por Vagalumes. A única preocupação de Joel é salvá-la, e acaba levando uma coronhada, acordando no hospital Saint Mary, confuso. Marlene informa que Ellie foi salva mas Joel não pode vê-la porque está sendo preparada para a cirurgia. Explica que descobriram que a infecção sofreu uma mutação em Ellie, e poderão criar até mesmo uma vacina, o que poderia salvar inúmeras vidas. O revés disso tudo, no entanto, é enorme: o fungo cresce em todo cérebro, o que significaria que Ellie iria morrer no processo.

“Um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis”, diz Freud. Vemos a versão sobrevivente de Joel reaparecer, com definitivamente todas suas medidas defensivas, e enquanto a música de fundo se intensifica, nós, jogadores, Joels, indignados, que partilhamos de cada trauma e perda que ele passou, também apertamos nossas mandíbulas, seguramos firme no controle e nos preparamos para ir às últimas consequências para proteger Ellie.

Quando estão quase saindo do hospital, Marlene tenta negociar com Joel. Insiste que mesmo que Ellie sobreviva agora, ela será morta ou até pior depois, numa frase que lembra, veja só, todo ponto da tragédia – a certeza do fim iminente. “Você ainda pode fazer a coisa certa”, ela diz, e é respondida com disparos de Joel. Esse é o (quase) fim dos vagalumes.

Como dito no início, a imersão é o ponto chave da magia dos jogos de videogame, e não tenho dúvida de que todos agimos em uníssono naquele momento. A ação de Joel não apenas dizima o centro principal da facção, como também mata uma das únicas pessoas capazes de trabalhar em uma vacina – algo que irá assombrá-lo futuramente. Sua decisão não apenas significa que Ellie importa mais que todo o resto da humanidade, mas talvez possa até refletir numa vingança contra o mundo que lhe tirou Sarah. Na realidade dele, não há qualquer possibilidade que lhe faça aceitar perder outra filha.

Em entrevistas, Neil Druckmann menciona que “quando se é pai (ou mãe), não existe uma escolha. Você sempre vai proteger seus filhos”. E a falsa promessa dita a Ellie, na última cena do jogo, mostra que aceita qualquer consequência, contanto que sua nova filha que tanto ama esteja bem. Na visão de sobrevivente que Joel sempre teve, talvez esse seja o significado de ser pai, e de se manter um herói trágico: mesmo sabendo de tudo que fez, de todas as consequências que vão chegar, Joel mantém-se firme em sua escolha, e salvá-la é a única coisa certa. Afinal, é tudo sobre aquela garotinha.

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